RIO — Morreu na tarde desta quinta-feira, pouco depois das 13h30m, a atriz, empresária e produtora teatral Ruth Escobar, de 82 anos. Ela sofria de Alzheimer e estava internada no Hospital Nove de Julho, em São Paulo, onde vivia. O velório será realizado no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, a partir das 22h desta quinta e segue até às 11h desta sexta-feira, quando o corpo será levado para o crematório da Vila Alpina. Devido ao falecimento da atriz, a sessão do espetáculo "Senhorita K.", que seria realizada nesta quinta, às 21h, foi cancelada.
Empreendedora inclinada ao pioneirismo, ao risco e à controvérsia, Maria Ruth dos Santos Escobar se consolidou, entre os anos 1960 e 1980, como a mais ousada empreendedora teatral do país. Como atriz, produtora e idealizadora, seu nome está gravado em algumas das mais ambiciosas e arrebatadoras criações do teatro brasileiro — responsáveis pela passagem do teatro moderno para o que se chama, hoje, de teatro contemporâneo.
Foi ela a responsável por trazer ao Brasil, pela primeira vez, montagens de ícones do teatro mundial, como os poloneses Jerzy Grotowski (1933-1999) e Tadeuz Kantor (1915-1990), o argentino Victor García (1934-1982), o americano Robert Wilson, assim como produziu criações importantes de grandes encenadores brasileiros, como Antunes Filho, Antônio Abujamra e Gerald Thomas.
Nascida na cidade do Porto, em Portugal, em 31 de março de 1935, Maria Ruth dos Santos Escobar começou a fazer teatro aos 14 anos, numa peça do grande dramaturgo português Gil Vicente, "pois queria fazer o melhor teatro do mundo", dizia. Talento e ambição acompanharam Ruth desde cedo, e um ano depois de sua estreia teatral, a atriz deixou Portugal aos 15 anos e chegou ao Brasil em 1951. Aqui, pouco tempo depois, casou-se com o filósofo e dramaturgo Carlos Henrique Escobar e, em 1958, partem juntos para a França, onde Ruth se dedica a cursos de interpretação. Ao retornar ao país, no começo dos anos 1960, ela realiza seu primeiro empreendimento teatral, a formação da sua própria companhia, a Novo Teatro, em parceria com o diretor Alberto D'Aversa.
A VIDA E A CARREIRA DE RUTH ESCOBAR EM IMAGENS
A VIDA E A CARREIRA DE RUTH ESCOBAR EM IMAGENS
Após produzir e atuar em diferentes montagens do seu grupo, Ruth decide dar um passo além, e realiza, em 1964, um dos primeiros projetos sociais vinculados à arte do país, o Teatro Popular Nacional. O projeto surgiu da vontade de Ruth em realizar um teatro popular e que pudesse ser assistido por todos. A produtora, então, comprou um ônibus e o transformou num palco móvel, que passou a percorrer a periferia de São Paulo e apresentar diferentes peças de teatro.
Inquieta e apaixonada por vanguardas artísticas, neste mesmo ano ela ergueu o seu próprio teatro. Casada à época com o arquiteto Wladimir Pereira Cardoso, que se tornou o cenógrafo de suas produções, Ruth produziu grandes montagens, comno "A ópera dos três vinténs" (1964), de Bertolt Brecht e Kurt Weill, com direção de José Renato; "O casamento do Sr. Mississipi" (1965), de Dürrenmatt, dirigida por Jô Soares; "As fúrias" (1966), de Rafael Alberti, com encenação de Abujamra; até "Lisístrata" (1968), de Aristófanes, encenada por Vaneau.
Foi neste mesmo 1968, às vésperas do AI-5 e sob uma ditadura cada vez mais pesada que Ruth realizou a primeira de suas grandes parcerias com o diretor e enfant terriblé Victor Garcia — as montagens de "Cemitério de automóveis" (1966) e de "O Balcão" (1969) são até hoje consideradas divisores de águas do teatro brasileiro. Em 1966, Ruth convidou o diretor franco-argentino para recriar no Brasil a sua montagem para "Cemitério de automóveis", de Fernando Arrabal, encenada no começo daquele ano em Paris. Para o projeto, Ruth alugou uma antiga garagem que foi totalmente remodelada para a encenação. A montagem consagrou não apenas a capacidade de realização da produtora, mas o talento da atriz Ruth Escobar, que protagonizou a obra ao lado de Stênio Garcia em meio a máquinas, carcaças de veículos, motores, guindastes e demais peças e equipamentos mecânicos que compunham a ambientação cênica do espetáculo. A plateia era acomodada em cadeiras giratórias que permitiam uma experiência em 360º. Com figurinos exóticos e muita nudez, a encenação causou escândalo e arrebatamento em iguais medidas, levando o crítico Sábato Magaldi a considerá-la um evento marcante da História do teatro brasileiro:
"O desempenho liberto da dicção realista, o desenvolvimento antipsicológico dos conflitos, a violência física e as evoluções acrobáticas punham diante de nós um universo inédito, cujos paralelos teóricos parecem irmanar-se ao ritual artaudiano ou mesmo grotowskiano", escreveu o crítico.
Seu prestígio aumenta, em 1969, com a produção de "O balcão, de Jean Genet, também dirigida por García. A produção arrebatou todos os prêmios importantes do ano e Ruth foi agraciada com o troféu Roquette Pinto para a personalidade do ano. Para cada espetáculo, Victor elaborava um novo projeto arquitetônico: “O essencial é encontrar uma arquitetura”, dizia. Assim, com a anuência de Ruth, o diretor destruiu o palco italiano do Teatro Ruth Escobar e instalou ali uma edificação de cinco andares, de onde descia uma rampa em espiral de nove metros cercada por elevadores, guindastes e gaiolas, por onde atuavam nomes como Raul Cortez, Ney Latorraca, Lilian Lemmertz, Sergio Mamberti e muitos outros. Gerald Thomas, que assistiu a “O balcão” no começo da adolescência, recorda o impacto:
Seu prestígio aumenta, em 1969, com a produção de "O balcão, de Jean Genet, também dirigida por García. A produção arrebatou todos os prêmios importantes do ano e Ruth foi agraciada com o troféu Roquette Pinto para a personalidade do ano. Para cada espetáculo, Victor elaborava um novo projeto arquitetônico: “O essencial é encontrar uma arquitetura”, dizia. Assim, com a anuência de Ruth, o diretor destruiu o palco italiano do Teatro Ruth Escobar e instalou ali uma edificação de cinco andares, de onde descia uma rampa em espiral de nove metros cercada por elevadores, guindastes e gaiolas, por onde atuavam nomes como Raul Cortez, Ney Latorraca, Lilian Lemmertz, Sergio Mamberti e muitos outros. Gerald Thomas, que assistiu a “O balcão” no começo da adolescência, recorda o impacto:
— Victor dirigia o que estava em volta, o entorno. Aprendi isso com ele. Instaurava climas, sensações, estados de percepção. Não conheci ninguém que fizesse isso — diz. — Ele estava à frente, tinha uma visão pós-moderna nos anos 1960, mas não era verbalmente articulado. Era um sujeito encantado, que olhava diferente, sempre meio fora do ar. Era a mistura de Artaud e Rimbaud. Não só um diretor de teatro, mas um artista completo que, por acaso, fazia teatro. Ele me influenciou, influenciou Bob Wilson e muitos outros. As pessoas devem muito a ele. Victor era um vaga-lume com uma luz na bunda.
Cinco canos depois, Ruth idealizou e produziu o primeiro grande festival internacional de artes cênicas de São Paulo, o Festival Internacional de Teatro, cuja primeira edição foi realizada na capital paulista, em 1974. O ambicioso projeto se encarregou de apresentar, pela primeira vez no país, uma encenação de Wilson, "The life and times of Joseph Stalin", cujo título foi alterado para "The life and times of David Clark" por determinação da censura. Nesta mesma primeira edição, o festival também apresentou a versão de Victor García para o clássico "Yerma", de Federico Garcia Lorca, com Nuria Espert em cena, assim como também se apresentaram os diretores Andrei Serban e Grotowski.
Dois anos depois, outro ousado projeto de sua autoria voltou a enfrentar a resistência da censura. A Feira Brasileira de Opinião, que reunia textos dos mais destacados dramaturgos da época, foi interditada pelos militares, gerando prejuízos inesperados para a produtora.
Militante da Anistia Internacional, Ruth atuou firmemente contra a ditadura militar brasileira. Chegou a ser enquadrada na Lei de Segurança Nacional e teve seu teatro destruído pelo CCC (Comando de Caça aos Comunistas) às vésperas da estreia de “Roda viva”, de Chico Buarque e direção de Zé Celso Martinez Corrêa, em episódio que a levou à prisão, ao lado de Marília Pêra. Controversa e intempestiva, ao mesmo tempo em que era perseguida por suas críticas políticas e realizações artísticas, buscava e conseguia recursos nos gabinetes dos políticos do regime que tanto combatia — na peça “Torre de Babel” (1977) pôs em cena um burro chamado Ernesto, em referência ao general Geisel, que presidia o país no momento. Essa relação conflituosa chegou a ser objeto de estudo da tese de doutorado “O embate além do sangue e da carne de Ruth Escobar: censura e ditadura militar”, do historiador Éder Sumariva.
— Ruth travava embates homéricos com os censores e buscava no poder público os recursos financeiros para as peças. E conseguia! Nada era impossível para ela — disse o historiador ao GLOBO, 2013. — Ela tinha verba do Serviço Nacional de Teatro, da Funarte. Ia atrás de dinheiro com políticos (foi deputada duas vezes nos anos 1980). Não tinha pudor em pedir. E fazia muitas peripécias.
Quando quatro atores de “A Revista do Henfil” foram presos em Santos pelo Dops, Ruth invadiu a delegacia ao lado de Eduardo Suplicy.
— Soltaram todos — disse Éder. — Outra vez, no Dops de São Paulo, fez tanta algazarra que um policial gritou: “Liberem este ator antes que ela coloque fogo aqui.”
Após cumprir dois mandatos como deputada estadual pelo PMDB (1981-1987), acabou expulsa do partido, voltando ao teatro e à carga na produção de mais quatro edições do seu festival internacional, em que apresentou companhias fundamentais, como o Cricot 2, de Tadeusz Kantor, o grupo japonês Dumb Type, o russo Levdodine, Michell Picolli, entre outros.
Em 1987, Ruth lança "Maria Ruth - Uma Autobiografia", em que narrea parte da sua trajetória. E três anos depois, em 1990, retorna aos palcos numa encenação de Gabriel Villela para "Relações perigosas", de Heiner Müller.
Ao analisar sua importância na cena artística brasileira, a crítica e ensaísta Ilka Marinho Zanotto observou: "Se quiséssemos traçar a evolução do teatro brasileiro no século XX [...] teríamos forçosamente de incluir entre os cumes de suas realizações a trajetória polêmica da atriz-empresária Ruth Escobar. Marcada pelo signo do inconformismo, pelo faro do verdadeiramente artístico e do anticonvencional".
Em 2000 Ruth Escobar começou a a sofrer com o Alzheimer, e em 2006 a atriz foi interditada, a pedido de familiares, e seu patrimônio passou a ser administrado por um escritório de advocacia.
Leia mais: https://oglobo.globo.com/cultura/morre-atriz-produtora-ruth-escobar-aos-81-anos-21912928#ixzz4ujHRRIX8
Apud: https://oglobo.globo.com/cultura/morre-atriz-produtora-ruth-escobar-aos-81-anos-21912928